edmilsonPSOL

Cópia de image00034

A Batalha de Belo Monte

Tania Pacheco – Combate Racismo Ambiental

A Folha de hoje traz uma matéria especial em cinco capítulos temáticos sob o título “A batalha de Belo Monte”. Segundo está dito na abertura, a equipe “passou três semanas na cidade para produzir a reportagem mais completa – com 24 vídeos, 55 fotos, 18 infográficos e um game – sobre o maior projeto de infraestrutura do Brasil”. O capítulo inicial, uma visão geral da questão, segue o ‘padrão Belo Monte’: tudo é grandioso nele, inclusive as fotos mostrando as turbinas e estruturas gigantescas, gráficos comparativos que mostram como a obra terá 16 vezes a quantidade de aço existente na Torre Eifel e utilizará 39 vezes a de concreto usada no Maracanã (resta saber se na construção ou contando também as inúmeras reformas) etc. A fonte das informações, claro, é o CCBM – Consórcio Construtor de Melo Monte.

Segundo essa apresentação, ao contrário do que é dito em blogs, redes sociais e outros meios de comunicação alternativos, a felicidade dos 25 mil trabalhadores não poderia ser maior, considerando as condições que lhes são oferecidas:

Os alojamentos têm dormitórios para no máximo quatro pessoas, com ar-condicionado, banheiro interno e água quente. Dezenas de quartos compõem os “condomínios”, em cada um dos quais só se entra com o crachá magnético correspondente. No pátio interno entre os condomínios, os quartos são isolados por alambrados. As opções de lazer são ver TV, ir à academia, jogar sinuca, dominó ou pebolim. Há espaço para cultos religiosos e aulas de informática. Um cinema com 200 lugares está para ser inaugurado.

Isso faz com que sejam considerados “ótimo e bom” o conforto (89%); a limpeza do local (84%); a organização (71%); e as oportunidades de lazer (70%). De acordo com a Data Folha, responsável por todos esses percentuais, “só a qualidade da alimentação divide opiniões: 45% de ótimo/bom contra 45% de regular”.

A avaliação das condições de trabalho jã não é tão ‘entusiástica’. São ótimas ou boas para 64%; regulares para 30%; e ruins ou péssimas para 5%. Quanto à satisfação com o trabalho em si, 57% estão muito satisfeitos; 37% um pouco satisfeitos; e 5% nada satisfeitos. Um dos motivos talvez seja o fato (informado no decorrer da própria reportagem) de dois terços dos trabalhadores terem suas famílias fora de Altamira ou do próprio estado, e somente uma operadora de celulares funcionar no local. Coincidentemente (também informação da reportagem), a Oi, que “tem entre seus controladores a Andrade Gutierrez, líder das empreiteiras do CCBM (que conta ainda com Odebrecht e Camargo Corrêa)”. Tudo isso não impede que a Data Folha tenha apurado que 88% dos operários aprovem a obra.

Problemas com os índios?

Se está tudo bem com os operários (embora alguns descontentes também afirmem que recebem bem menos do que esperavam e irão embora assim que puderem), com as 32 aldeias indígenas da região a situação corre às mil maravilhas. Problemas mesmo só com gente que vive a 800 quilômetros de distância e procura um “palco” onde a paz já foi estabelecida há muito tempo: os Munduruku. A informação é de Antônio Kelson Elias Filho, diretor de obras da Norte Energia e, de acordo com a Folha, “o próprio comandante em chefe da megaconstrução”, distribuindo “ordens o tempo todo, pessoalmente e por telefone”.

Como já foi dito e a matéria repete, “tudo em Belo Monte é colossal”, a começar pelo desastre social e ambiental. Mas o enfoque escolhido para analisar a questão nesta apresentação está longe de seguir este caminho. O estrago é mostrado como se devêssemos dele nos orgulhar:

O canal de 20 km sob o comando da engenheira Roberta Pereira tem no mínimo 200 m de largura no fundo e pode ultrapassar 300 m na borda superior dos taludes. A água alcançará uma profundidade de 22 m, o equivalente a um prédio de sete andares. A barragem em Pimental terá 8 km. O coração da usina, em Belo Monte, vai abrigar 18 turbinas de 5 m de altura e 8,5 m de diâmetro em nichos escavados na rocha viva, com altura de 45 andares. O gerador movimentado pela turbina tem 22 m de diâmetro e precisa ser levado desmontado até a região, pela impossibilidade de transportá-lo numa peça só.

Numa animação de três minutos, A Usina, fica fácil entender as proporções do que será feito ao Xingu e às comunidades, à flora e à fauna do local, assim como aquelas que sofrerão seus efeitos a partir dali.

Os únicos senões estão restritos ao quase final do capítulo inicial. Abaixo do subtítulo “Contas duvidosas”, dois parágrafos rápidos comentam como se deu a concorrência  e o papel de financiador desempenhado pelo BNDES. O terceiro contém uma crítica direta de Carlos Vainer:

Em abril de 2010, a Norte Energia venceu a concorrência pela concessão de Belo Monte oferecendo um valor 6% menor (R$ 78) que o preço de referência. O custo da obra estimado pela Norte Energia, contudo, era 30% superior ao máximo previsto pelo governo. Para o mercado, não parecia possível recuperar o investimento com a tarifa oferecida. Uma decisão da Eletrobras tomada meses depois do leilão reforçou essa suspeita.

A Eletrobras, holding estatal que controla a Chesf, firmou um contrato com a Norte Energia para comprar, por R$ 130 o MWh, a energia excedente que Belo Monte puder vender no mercado. Esse preço da eletricidade extra vendida no mercado livre varia diariamente e, na média dos últimos dez anos, ficou em R$ 79. Portanto, a estatal-mãe deu uma bela ajuda à filha, que a usou para convencer o BNDES a liberar um empréstimo subsidiado de R$ 22,5 bilhões.

“A isso se dá o nome de energia limpa e barata”, ironiza Célio Bermann, professor do Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP. Para o especialista, Belo Monte está acima da média mundial de US$ 1 mil por MW instalado e vai ocasionar despesas para o contribuinte com os subsídios implícitos no financiamento e na comercialização da energia.

Seguem alguns comentários finais sobre a necessidade de liberação pelo Ibama e a situação dos moradores de Altamira, para os quais “a eletricidade de Belo Monte ainda é uma ficção”. Como diz um empresário que vende exatamente aparelhos de ar condicionado, encerrando a matéria, “Estamos fazendo a maior usina do Brasil e não temos energia”. Mas, segundo a Folha, a empresa “deve a própria prosperidade a Belo Monte: em dois anos a firma passou de 5 para 25 funcionários”. Vantagens do progresso?

 

Capítulo 2: o Ambiente – A Volta Grande do Xingu

O capítulo 2 tem por temática o “Ambiente“, e abre com a foto aérea magnífica e angustiante dos pedrais da Volta Grande (acima), que desaparecerão sob as águas, assim como toda a vegetação em torno. A natureza é a atriz principal, mostrada a partir dos peixes ornamentais que garantem a vida de muitos indígenas e ribeirinhos, embora sua venda seja proibida, a vídeos curtos mostrando o atual Xingu, com suas prais, matas, reservas etc. Tudo o que será alagado. Temos até mesmo foto de indígenas em uma das audiências públicas que o governo diz ter realizado, respeitando a Convenção 169 da OIT. Filhotes de macacos, informações sobre o monitoramento de peixes e esclarecimentos sobre a derrubada de árvores são documentados em imagens, uma das quais não resisto em republicar:

Madeira de desmatamento para a construção da usina de BM. Imagem: Lalo de Almeida – Folhapress (internet)
Madeira de desmatamento para a construção da usina de BM. Imagem: Lalo de Almeida – Folhapress (internet)

Terminando, uma crítica à forma como vem sendo conduzida a questão de “mais um empreendimento de grande impacto – Belo Sun, maior mina de ouro do Brasil”:

A empresa de capital canadense planeja processar 94 milhões de toneladas de minério na Volta Grande, a partir de 2016, e extrair dele um total de 142 toneladas de ouro puro ao longo de 13 anos. Para comparação: estima-se que 100 toneladas tenham saído do garimpo de Serra Pelada, em uma década de funcionamento.

Apesar de a área de influência direta de Belo Sun se sobrepor à de Belo Monte, os estudos de impacto ambiental dos empreendimentos não só não levam em conta um ao outro como estão sendo fiscalizados por órgãos diferentes: o Ibama, no caso da hidrelétrica, e a Secretaria de Meio Ambiente do Pará, no caso da mina. O estudo de impacto da mineração, no entanto, baseia-se em dados sobre a vazão do Xingu que não consideram a presença da usina. Mineradoras geram montanhas de rejeitos, em geral armazenados em lagoas sujeitas a rompimento em época de chuvas fortes.

 

Capitulo 3: A Sociedade – Altamira invadida

População urbana aumenta de 100 mil para 140 mil em dois anos e transforma cidade num caos de acidentes de trânsito, violência e carestia. Por outro lado, o local também vai receber milhares de casas e o saneamento básico que nunca teve. 

A legenda está escrita sobre uma foto que mostra uma briga de mulheres, no meio de uma rua de terra. Seguem diversas outras imagens variadas da mesma situação de violência. É assim que será introduzida a questão da miséria de Altamira, da droga, da falta de saneamento, dos bêbedos que caem nas águas do Xingu lado a lado com o esgoto.

Como diz a matéria, o caos chegou a Altamira, e não é de surpreender que os resultados da pesquisa da Datafolha  não repitam os obtidos junto aos felizes trabalhadores da obra (que curiosamente fazem uma greve atrás da outra).  Na área urbana, a geração de empregos é considerada seu melhor resultado por 66% dos moradores, mas 44% acreditam que tudo ficará pior depois dela. O que também significa pouco, na medida em que, segundo os dados, trata-se de “parcela quase igual à dos que dizem que ficará melhor (43%).

A superintendente responsável pelo cumprimento das condicionantes socioambientais da Norte Energia, Cassandra Molisani, afirma que “É o maior projeto socioambiental em curso no mundo. (…) Na história das hidrelétricas no Brasil não existe notícia de uma lista tão extensa e tão detalhada como a que foi feita para Belo Monte”. Segundo a matéria, entretanto,

“muitas das obras estão atrasadas, e os serviços públicos, saturados. O único hospital de portas abertas da cidade passou a atender também os novos moradores. “Estamos 150% lotados o tempo inteiro”, afirma o secretário municipal de Saúde, Waldecir Maia. Um novo hospital está em construção, com capacidade para cem leitos, mas deveria ter sido entregue em 2012 e só ficará pronto em 2014.

Pelas fotos, miséria aparentemente é só o que existe em Altamira. Barracos sobre palafitas, para fazer frente aos meses de cheia; claros sinais de prostituição e uso de drogas; policiais armados invadindo os “baixões”; prisões sendo efetuadas na frente de crianças, que parecem sequer delas tomarem conhecimento. Na foto baixo, em meio às palafitas e ao lixo é possível ver parte do corpo de uma mulher, possivelmente “apagada” pelo crack que impera. A legenda de outra foto informa que todo o bairro será inundado em 2015.

Equipe da PM paraense dá batida em um dos baixões (bairros de palafitas) de Altamira. Imagem: Lalo de Almeida – Folhapress (internet)
Equipe da PM paraense dá batida em um dos baixões (bairros de palafitas) de Altamira. Imagem: Lalo de Almeida – Folhapress (internet)

Por outro lado, a matéria informa que os salários e os aluguéis dispararam; o número de acidentes de trânsito e de atropelamentos também.

Fotos mostram ainda os imensos rasgos na floresta, onde estão sendo construídos os tais bairros populares, para abrigar as muitas populações que serão removidas. Do alto, parecem um tabuleiro com casinhas de brinquedo uniformemente arrumadas por alguma criança (má). Num vídeo, a Defensora Pública Andreia Barreto fala das pessoas que estão sendo expulsas de seus sítios, sem a chance sequer de fazer a colheita e obrigadas a aceitar os cálculos da Norte Energia quanto ao valor da ‘propriedade’. E há ainda os ribeirinhos, os oleiros… Verdade que todos também podem escolher se mudarem para as tais casinhas de brinquedo de 63m2. Nas cidades, seria um tamanho razoável.

 

Capítulo 4: Povos  Indígenas: Índio não quer mesada

Apesar do título, a abertura do capítulo não poderia ser mais explícita quanto ao quadro a ser pintado:

Não é preciso deixar a zona urbana de Altamira para dar de cara com a questão indígena deflagrada pela usina de Belo Monte. A poucas quadras do centro, na rua Coronel José Porfírio, a sede local da Fundação Nacional do Índio (Funai) é o retrato acabado de uma repartição pública sob estresse: paredes encardidas, poucos funcionários à vista, quatro camionetes Mitsubishi novas, uma delas batida, e uma kombi caindo aos pedaços.

A multidão de índios se espalha pelos terraços e jardins, vários recostados em redes. A maioria é de mulheres e crianças, muitas crianças, que defecam sem cerimônia pelo terreno encravado no campus da Universidade Federal do Pará em Altamira. Na terça-feira de setembro em que a reportagem da Folha esteve pela primeira vez na Funai de Altamira, as mulheres não paravam de chegar em busca dos papéis para receber o salário-maternidade do INSS. Só naquele mês foram 400 índias em busca do benefício.

Uma entrevista com Giliarde Juruna, líder da aldeia Muratu na terra Paquiçamba, enumera reclamações contra os prejuízos com o afastamento dos peixes e a falta das roças, afirmando que os indígenas locais querem retomar suas vidas sem depender da Norte Energia. Será? A matéria não persegue a questão, entretanto, e prefere falar dos Kaiapó do Cacique Raoni e dos Munduruku que, embora respectivamente a 500 e a 800 kms da usina, são os que mais a atacam, inclusive viajando essa distância para exigir que uma belo monte não se repita em seus rios e terras.

A posição é apoiada no pequeno vídeo gravado com Dotô Takakire, Kaiapó da TI Baú-Mekragnotire e coordenador técnico da Funai em Novo Progresso (PA). Segundo a reportagem ele “repete em português claro a ameaça consagrada por sua tia Tuíra há quase um quarto de século, quando encostou o terçado no rosto do engenheiro José Antônio Muniz Lopes, da Eletronorte: ‘Governo faz consulta, mas constrói de qualquer jeito. Na próxima construção [de outras barragens no Xingu], vai ter guerra’”. No vídeo, ele afirma claramente que, ao contrário dos Xikrin, que optaram pelo acordo com o CCBM, os Kaiapó estão dispostos a lutar para que não haja mais nenhum barramento acima no rio Xingu.

Na verdade, as mesadas da Norte Energia, numa síntese do que está dito por diferentes pessoas, indígenas ou não, tiveram o poder de viciar alguns e de estabelecer a cizânia entre outros. Por outro lado, ao ignorar os ribeirinhos de uma das margens do rio, tornaram-nos aliados dos indígenas, como diz Herculano Costa Silva, que já foi ameaçado, teve a casa queimada por grileiros, fugiu para ser garimpeiro, mas acabou voltando à reserva na margem do Xingu.

Uma homenagem deste blog aos Munduruku, na foto de quando tomaram o canteiro de obras de Belo Monte. União e resistência. Foto: Lunae Parracho (REUTERS)
Uma homenagem deste blog aos Munduruku, na foto de quando tomaram o canteiro de obras de Belo Monte. União e resistência. Foto: Lunae Parracho (REUTERS)

 

Capítulo 5: História – Quatro décadas de luta

Neste capítulo final, o que temos é a ‘história oficial’ de Belo Monte, contada a partir de “um diálogo corriqueiro, no ano de 1972, entre um balseiro do Xingu e um jovem engenheiro canadense, John Dennis Cadman. ‘Qual é a cota aqui?’, perguntou Cadman. ‘Não sei, moço. Mas aqui tem maré’”…

Vale destacar mesmo a foto com animação da ameaça de Tuíra, com seu facão, e o vídeo com a revolta dos Kaiapó, que fez com que o nome Kararaô fosse trocado por Belo Monte.

A mudança do nome, anunciada solenemente da mesa para a plateia indígena, foi comemorada com aplausos. Soubessem eles o que estava pela frente, e acho que teriam chorado.

 

A abertura da matéria pode ser acessada clicando AQUI. E, embora eu tenha passado horas escrevendo a respeito, acho que ela deve ser lida e vista no original.