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Amazônia perde Vicente Salles

Por Magda Ricci*

Todos que nascem, um dia, morrem, mas existem pessoas que, realmente, fazem falta. Uma história da Amazônia sem o professor Vicente Salles está visivelmente mais pobre e desfalcada de um de seus mais significativos nomes. Sem Salles, a história dos negros, da música, dos cordelistas, dos cantores, dos dramaturgos, dos literatos e, fundamentalmente, da arte na Amazônia está, hoje, órfã. Digo isso sem medo de exagerar e devo ir além. Salles não pode ser resumido a um historiador. Ele, certamente, foi mais do que isso. Polissêmico, ora era um folclorista; em outros estudos, transmutava-se em musicólogo, em antropólogo ou em literato. A lista de seus campos de saberes só não é maior do que a de seus estudos. Entre acuradas obras de referência e levantamentos biobibliográficos, ainda sobrou espaço para publicação de importantes análises nos campos da cultura, da arte e da sociedade amazônica. Dentre os muitos estudos fundamentais, Salles soube construir algumas obras primas. O Negro no Pará é apenas uma delas, mas vou apontá-la para que todos percebam o alcance do que publicou Vicente Salles.

Seu pioneirismo em distinguir o riquíssimo mundo dos afro-descentes na Amazônia é apenas a ponta de um iceberg bem maior de tributos desse magnífico livro, que já mereceu três edições e, certamente, merecerá outras tantas. Uma obra ímpar de seu tempo, na qual o negro não é analisado como um mero expectador vitimado numa história em que o homem branco estigmatiza-se como um mero e genérico opressor colonizador.

Em Negro no Pará (mas não apenas nele), Salles conseguiu aprofundar o estudo da opressão. Deu nomes e fisionomias aos brancos e aos negros. Colocou-os em movimento numa luta de classes concreta. Fez isso, porque, de sua pena, nada saía sem provas. Leu documentos manuscritos, mas, fundamentalmente, leu uma quantidade imensa de livros e de coleções de jornais antigos. Também leu partituras musicais, pinturas, gravuras, desenhos, xilogravuras, caricaturas e esculturas. Buscou gente concreta nas mais diversas fontes, na arte e na escrita. Correu atrás de batalhas cotidianas que saíam do passado colonial e imperial, mas também podiam ser vistas em pleno século XX ou XXI. O Negro no Pará revela saberes, artes e artimanhas de resistências sociais e culturais de um povo negro que, mesmo escravizado, foi capaz de construir um universo particular e rico de culturas e conhecimentos naturais e espirituais. E a obra de Salles ainda tem mais um grande mérito: este negro no Pará não foi percebido de forma isolada. Ele foi analisado em simbiose com o novo mundo amazônico, suas gentes e diversidade. Era a história do negro no Pará e este “no” não era aleatório. Era o negro no meio de outros elementos, no universo maior entre outras tantas pessoas, de outras incontáveis culturas.

Destaque para a defesa da cultura paraense e amazônica

Vicente Salles faz muita falta não só pelas obras primas que publicou, mas também pelo teor da luta política. Ávido leitor, atento cientista social e político, arguto jornalista e periodista, Salles fez da vida um combate constante pela cultura popular paraense e amazônica. A Salles interessava toda gente que fazia arte e cultura. Não havia discriminações. Não havia credos, origens ou etnias a serem esquecidas. Nada de uma cultura popular isolada e pura. Salles sempre militou por artistas, literatos, folcloristas e tantos outros homens e mulheres que faziam vir à tona a cultura do povo amazônico em toda sua diversidade. Apesar disso, Salles tinha uma clara opção política e ideológica.

Vicente Salles teve boa parte da vida atravessada pela ditadura política e pela censura. Conheceu poetas e militantes da cultura paraense desde cedo. Foi com Bruno de Menezes e com outros tantos artistas e artesãos que aprendeu, ainda jovem, a importância desse universo da cultura popular e do folclore. O jovem Salles também percebeu a necessidade da militância política para sua preservação. Militou, desde cedo, pela comissão nacional do folclore ao lado de Edison Carneiro. Comunista por princípio, a atuação nos tempos sombrios da ditadura foi nitidamente marcada pelo sentido politizado de seu trabalho intelectual. Nesse universo, trabalhou assiduamente. Na Comissão de Folclore e na Fundação Nacional de Artes (Funarte), organizou coleções, editou periódicos, publicou artigos, livros, discos e CDs. Toda essa labuta de muitos anos fez surgir escritos e gravações centrais ao conhecimento e à conservação do folclore e da cultura paraenses e amazônicas. Todo esse trabalho gerou também uma imensa coleção de recortes de jornais, de cartas trocadas com os mais importantes intelectuais da cultura brasileira do século XX. Sua coleção ainda contava com a presença de preciosas partituras, bem como com uma coleção importantíssima de livros de literatura de cordel. Já nos tempos de se aposentar, em meados dos anos de 1990, Salles teve a coleção pessoal recebida e bem acolhida no Museu da Universidade Federal do Pará (MUFPA), local que ele também dirigiu, inicialmente, quando os estudos e as coleções chegaram à mencionada instituição. Desta feita, o militante e escritor comunista e folclorista também se tornou um colecionador, e um de seus mais importantes legados são esses documentos. Desde já, esse acervo ajuda inúmeros pesquisadores das mais diversas áreas de atuação. Da teoria literária à história social e cultural, das artes plásticas à dramaturgia: o acervo da coleção Vicente Salles, presente no Museu da UFPA, já faz a Amazônia conhecer muito melhor a si mesma e fará muito mais para cada um que, por lá, passar para visitar ou pesquisar.

Incentivo – Salles foi um homem de muitas áreas e campos de atuação, mas, sobretudo, foi alguém que manteve uma coerência política e de atuação profissional inquestionável. Poderia aqui escrever uma relação de estudos e de como cada um deles representou um trabalho ímpar para um campo do saber da cultura e da arte amazônica. Poderia expor como cada um desses estudos não perdeu o tom político. Das sociedades euterpes até a história da música paraense, dos estudos sobre a música de Carlos Gomes até trabalhos sobre os cordelistas e a famosa editora Guajarina: tudo isso foi delimitado e teve o campo de estudos redesenhado por trabalhos de Salles. Todos esses e muitos outros dos estudos e das edições tinham por princípio algo que, hoje, é raro: a opção de Vicente Salles pelo povo e pela história e cultura amazônicos e paraenses.

Termino com uma lição silenciosa que aprendi de Salles. De certa feita, entreguei-lhe uma obra minha, que havia acabado de publicar. Era a biografia do Regente Feijó. Ele nunca me disse coisa alguma, mas jamais esquecerei o olhar dele naquele dia. Era como se me perguntasse: por que estudar Feijó? Por que escrever um livro sobre essa autoridade repressora dos cabanos e do povo amazônico? Eu também me perguntei isso muitas vezes depois daquele olhar. Ninguém, antes, havia me indagado politicamente de forma tão direta. Naquele momento, meu título de doutoramento, ou qualquer outro, não fazia muito sentido e o fazer a história ganhou nova dimensão. Estou, até hoje, tentando responder ao olhar dele.

Magda Ricci – Diretora da Faculdade de História da Universidade Federal do Pará

Fonte: Beira Rio – Jornal da Universidade Federal do Pará