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Lei que ratifica direitos de mulheres violentadas espera sanção de Dilma Rousseff

São Paulo – A presidenta Dilma Rousseff tem até o dia 1º de agosto para definir se sancionará ou vetará, total ou parcialmente, o Projeto de Lei Complementar (PLC) 03, de 2013, que define o atendimento médico que deve ser dispensado às vítimas de violência sexual no país. O texto não traz nenhuma novidade: servirá apenas para institucionalizar procedimentos já previstos por acordos internacionais, consagrados em portarias do Ministério da Saúde e adotados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A canetada presidencial poderá, portanto, garantir a continuidade dessas práticas, transformando-as em lei, ou, ao contrário, em caso de veto, abrir brechas para sua contestação judicial e possível interrupção – o que, segundo organizações sociais, médicas e feministas, seria um retrocesso aos direitos das mulheres.

O artigo é Tadeu Breda, da Rede Brasil Atual publicado 25/07/2013.

“Os artigos do texto já são seguidos pelos serviços de saúde na maioria dos casos”, explica Sarah de Roure, militante da Marcha Mundial das Mulheres. “Por mais simples e elementar que pareça o conteúdo projeto de lei, podemos garantir, com sua aprovação, que essas normativas, que são mais eficazes nos grandes centros urbanos, também passem a ser cumpridas em outros lugares mais afastados do país. É importante transformá-las em lei para que as mulheres fiquem ainda mais protegidas e amparadas para garantir seus direitos e suas condições de saúde nos casos de estupro e outras formas de violência sexual.”

“O projeto vem ratificar o que já fazemos há mais de dez anos”, explica o médico Carlos Oshikata, professor da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (SP) e membro da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo). “É uma lei que está vindo bastante tarde. Já sabemos há muito tempo que esse tipo de atendimento é necessário. Apenas 15% a 20% das mulheres que sofrem violência sexual no Brasil procura atendimento médico. E é muito difícil haver pessoas motivadas a atendê-las. Se o texto for vetado, as mulheres ficarão ainda mais vulneráveis. E o agressor terá uma sensação ainda maior de impunidade. Será um retrocesso total.”

Conteúdo

O PLC 03/2013 é bastante conciso: possui apenas quatro artigos. O primeiro determina que os hospitais devem oferecer às vítimas de violência sexual atendimento “emergencial, integral e multidisciplinar”, visando ao controle e ao tratamento dos “agravos físicos e psíquicos” recorrentes da agressão sofrida pela mulher. O segundo considera como “violência sexual” qualquer tipo de forma ou atividade sexual não consentida – ou seja, não é apenas estupro, apesar desta ser a mais agressiva e conhecida delas. O terceiro artigo traz uma lista dos procedimentos a serem observados pelos profissionais de saúde no momento de atender à mulher violentada que procura auxílio nas unidades do SUS.

São sete incisos: I – diagnóstico e tratamento das lesões físicas no aparelho genital e nas demais áreas afetadas; II – amparo médico, psicológico e social imediatos; III – facilitação do registro da ocorrência e encaminhamento ao órgão de medicina legal e às delegacias especializadas com informações que possam ser úteis à identificação do agressor e à comprovação da violência sexual; IV – profilaxia da gravidez; V – profilaxia das doenças sexualmente transmissíveis; VI – coleta de material para realização de exame de HIV para posterior acompanhamento e terapia; e VII – fornecimento de informações às vítimas sobre os direitos legais e sobre todos os serviços sanitários disponíveis.

Apesar de trazer procedimentos bastante óbvios para a proteção das mulheres vítima de violência sexual, e que já são observados na rede pública de saúde, o PLC 03/2013 vem sendo contestado por organizações religiosas cristãs, como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), e pela bancada evangélica no Congresso, que integra, em parte, a base aliada do governo federal. Apoiadas em seus preceitos morais, as entidades católicas e protestantes acreditam que o projeto pretende “legalizar” o aborto no Brasil.

Pressão

Mesmo com a oposição dos parlamentares cristãos, o texto acabou sendo aprovado por unanimidade na Câmara dos Deputados. “Esse projeto não traz o nome aborto. Foi aí que nos pegaram”, afirmou Marco Feliciano (PSC-SP), presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Casa, justificando por que não havia votado contra o projeto. “Eles foram muito sagazes.” O deputado Paulo Freire (PR-SP), presidente da Frente Parlamentar Evangélica, afirmou em entrevista ao portal UOL que a bancada agora está pressionando Dilma Rousseff para que vete a matéria. “Só com essas frentes temos por volta de 200 deputados, e vamos à presidenta pedir o veto a esse projeto absurdo.”

As entidades sociais e religiosas também expuseram contrariedade ao governo. No último dia 17, a ministra-chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, recebeu em Brasília representantes da CNBB, Federação Espírita do Brasil, Fórum Evangélico Nacional de Ação Social e Política, Movimento Nacional da Cidadania pela Vida Brasil sem Aborto, Confederação Nacional das Entidades de Família e Associação Nacional da Cidadania pela Vida. Elas também pedem o veto total ou parcial do PLC 03/2013. Além de participar da reunião, a CNBB circulou entre os bispos de todo o país uma carta em que explica os motivos pelos quais se opõe ao projeto.

Os católicos alegam não ser contrários ao “atendimento devido a uma vítima de violência sexual, nos aspectos físico, psicológico, legal e social, inclusive no que se refere à identificação do agressor e sua criminalização”, mas manifestam algumas contrariedades ao texto. A principal crítica se dirige ao inciso IV do artigo 3º. “Há incorreção conceitual a gerar descompasso jurídico por consagrar a gravidez como doença, uma vez que ‘profilaxia’ é termo relacionado à prevenção de doenças”, diz a epístola, assinada pelo secretário-geral da CNBB, Leonardo Ulrich Steiner. “Entendemos que associar gravidez a doença, uma doença a ser evitada, é de todo inadmissível.”

A entidade também não gostou do inciso VII. “Afora não ser o aborto um ‘direito’, mas sim um crime em relação ao qual há duas excludentes legais de punibilidade, não cabe aos hospitais orientação jurídica, ainda que a título de ‘informações’, sobre ‘direitos legais’”, esmiúça o bispo. “O inciso III já cobre o desejado atendimento legal, e outras informações devem ser prestadas pelas delegacias especializadas, e não pelo hospital.” Como lembra Steiner, a legislação permite que as vítimas de aborto interrompam sua gravidez. “Não se pune o aborto praticado por médico se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal”, diz o artigo 128 do Código Penal.

Tergiversação

“Concretamente, o projeto de lei não guarda nenhuma relação com o aborto”, rebate Sarah de Roure, da Marcha Mundial das Mulheres. “O texto está apenas regulamentando o atendimento médico que a mulher deve ter nos hospitais do SUS. Quando a mulher dá entrada no hospital, vítima de estupro, ela já recebe uma série de medicamentos para a prevenção de DST e aids, por exemplo, e pílula-do-dia-seguinte.” A militante lembra, porém, que os setores religiosos reconhecem a pílula-do-dia-seguinte como abortiva. “Mas é um contraceptivo de emergência”, argumenta. “E as igrejas são contra qualquer tipo de contracepção, até mesmo a camisinha.”

O ginecologista Carlos Oshikata endossa os argumentos da feminista. “Hoje, a mulher violada recebe um acolhimento privativo, que pergunta sobre as características da violência: onde foi, como foi, se anal, vaginal ou oral, se ela usa anticoncepcional etc.”, explica. “É feito exame físico na paciente, para verificar a existência de lesões decorrentes da violência. É colhido material biológico que possa servir de prova do crime, como esperma na vagina ou na roupa, para detectar o DNA do agressor. Qualquer ferimento é tratado e é prescrita a anticoncepção de emergência, além de remédios anti-DST. Além disso, é visto também a parte social: se é menor de idade, temos que acionar o Conselho Tutelar. Se não tem onde ficar porque foi violentada dentro de casa, por exemplo, é função do serviço de saúde acolher a mulher.” É exatamente o que determina o PLC 03/2013, complementa o médico. “Não tem nada a ver com aborto.”

Quanto à pressão da CNBB pelo veto ao inciso VII, que garante o “fornecimento de informações às vítimas sobre os direitos legais e sobre todos os serviços sanitários disponíveis”, Sarah questiona, perplexa: “Por que você não pode dar orientação às mulheres sobre os direitos legais?” A militante afirma que a contrariedade das igrejas se insere num contexto mais amplo de conservadorismo. “Essa postura se relaciona com outros projetos em discussão, como o Estatuto do Nascituro e a chamada bolsa-estupro, em que você reconhece a paternidade do estuprador e o Estado paga um valor para a mulher levar a gravidez adiante”, diz. “É um discurso que reforça as desigualdades contra a mulher. Parece que o estupro é uma violência menor frente ao aborto ou mesmo à contracepção.”

Histórico

Na portaria 528, publicada no Diário Oficial da União em 1º de abril, o Ministério da Saúde reúne uma série de leis, decretos e portarias anteriores para definir regras para habilitação e funcionamento dos chamados Serviços de Atenção Integral às Pessoas em Situação de Violência Sexual no âmbito do SUS. As regras passaram a valer no dia 2 de abril. Com elas, “os serviços hospitalares públicos deverão prestar atendimento clínico, psicológico, acolhimento, administração de medicamentos, notificação compulsória institucionalizada, referência laboratorial para exames necessários e referência para coleta de vestígios de violência sexual”, diz o ministério. “As ações também incluem interrupção de gravidez, nos casos previstos em lei.”

Ao menos uma cartilha do Ministério da Saúde também orienta os profissionais do SUS sobre o atendimento às mulheres que sofreram estupro. O documento Aspectos Jurídicos do Atendimento às Vítimas de Violência Sexual – Perguntas e Respostas para Profissionais da Saúde, editado em 2011, reconhece o aborto em caso de estupro um direito da mulher que foi violentada. “Como o sistema penal considera lícita e não criminosa a prática do abortamento nessa situação, é direito da mulher interromper a gestação decorrente de estupro”, afirma o texto, em contrariedade com a interpretação da CNBB.

Outra publicação, intitulada Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes e publicada em 2012, orienta sobre a administração da pílula-do-dia-seguinte às vítimas de estupro que procuram o serviço de saúde. “A anticoncepção de emergência deve ser prescrita para todas as mulheres e adolescentes expostas à gravidez, através de contato certo ou duvidoso com sêmen, independente do período do ciclo menstrual em que se encontrem, que tenham tido a primeira menstruação e que estejam antes da menopausa”, afirma o texto. “O risco de gravidez, decorrente dessa violência, varia entre 0,5 e 5%. A gravidez decorrente de violência sexual representa, para grande parte das mulheres, uma segunda forma de violência.”