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Povos da Pan-Amazônia: construindo resistências, apontando caminhos

Para as populações da Pan-Amazônia, a articulação e a unificação de suas lutas são um imperativo de sobrevivência. Os projetos de integração viária e de infraestrutura continental afetam inúmeros povos por meio de deslocamentos forçados, destruição ambiental, desestruturação das culturas e criação de bolsões de miséria

por Luiz Arnaldo Campos, Dion Monteiro

A viagem de Francisco de Orellana, conquistador espanhol, revelou para o Ocidente a existência de um mundo densamente povoado por sonhos que iam do El Dorado, ser mítico que se vestia de ouro em pó, às amazonas guerreiras. É justamente por isso que, de todas as terras americanas − denominadas Abya Yala pelo povo Kuna, antes da chegada dos europeus −, nenhuma provocou tanto a sensação de um novo e estranho mundo quanto a Amazônia, que por séculos oscilou no imaginário ocidental entre o Paraíso Perdido e o Inferno Verde.

As dificuldades de sua exploração em razão da vasta e densa selva e a falta de incentivos materiais (o ouro em grande escala só seria descoberto no século XX) somada à situação geográfica (uma espécie de limbo do Tratado de Tordesilhas) mantiveram largas extensões do território à margem do processo de ocupação colonial, fortalecendo a impressão generalizada de um mundo vasto, vazio, abandonado e repleto de riquezas inexploradas, que perdura até hoje.

Seguidamente descrita como a última fronteira a ser conquistada, a (Pan-) Amazônia chega aos dias atuais como uma espécie de perpetuação do sonho colonial, exemplarmente definida no slogan “Terra sem homens para homens sem terra”, utilizado pela ditadura militar brasileira para atrair colonos durante a construção da Rodovia Transamazônica, ainda no início dos anos 1970.

Brasil, Bolívia, Peru, Equador, Venezuela, Colômbia, República Cooperativa da Guiana, Suriname e Guiana Francesa, oficialmente um departamento francês, compõem o território da Amazônia internacional, ou Pan-Amazônia.

A dimensão pan-amazônica

Fundada em 1984, a Coordenação de Organizações Indígenas da Bacia Amazônica (Coica, na sigla em espanhol) foi a pioneira na percepção do fundo comum dos problemas que afligem os povos dessa vasta região. No entanto, foi só a partir do final dos anos 1990, quando teve início a mundialização da resistência ao neoliberalismo – então em seu apogeu –, que se ampliaram os contatos entre as redes, os movimentos sociais e os povos dos países amazônicos.

Em dezembro de 1999 realizou-se em Belém o II Encontro Americano pela Humanidade e contra o Neoliberalismo, convocado em conjunto pelo Exército Zapatista de Libertação Nacional (México) e pela Prefeitura da capital paraense. Em 2002, no rastro da primeira edição do Fórum Social Mundial (FSM), realizado no ano anterior em Porto Alegre, aconteceu igualmente em Belém o I Fórum Social Pan-Amazônico (FSPA), que se repetiria nos anos seguintes: outra vez em Belém (II FSPA), depois em Ciudad Guayana/Venezuela amazônica (III FSPA) e em Manaus (IV FSPA).

A realização do FSM, novamente em Belém, em 2009, que se notabilizou pela forte presença de delegações de indígenas amazônicos e comunidades tradicionais não só do Brasil, mas também do Equador, Peru, Colômbia, Venezuela e Bolívia, foi um marco nessa articulação, revitalizando inclusive o próprio FSPA, que, retomando sua dinâmica, realizou mais duas edições, uma em Santarém (V FSPA) e outra em Cobija/Bolívia amazônica (VI FSPA). A sétima edição do Fórum Social Pan-Amazônico já está marcada para 2014, em Macapá.

Por trás desse impulso encontra-se a insurgência indígena na Bolívia e no Equador, resultando em governos progressistas, embora limitados pela doutrina neodesenvolvimentista, e assembleias constituintes que proclamam o compromisso com a construção de Estados plurinacionais, tendo como meta a utopia do Sumak Kausay, traduzido em português por Bem Viver; a Revolução Bolivariana na Venezuela; e o crescimento da consciência sobre a crise climática e ambiental, que tem naturalmente a Amazônia como um de seus mais importantes cenários.

De lá para cá, verifica-se uma progressiva quebra do isolamento das lutas: o levante indígena na Amazônia peruana contra a instalação do Tratado de Livre Comércio entre o Peru e os Estados Unidos, conhecido como Baguazo, e a resistência dos amazônidas bolivianos contra a construção de uma rodovia através do Território Indígena e Parque Nacional Isidoro Securé (Tipnis) receberam o apoio de organizações e movimentos sociais de diversas partes da Pan-Amazônia, em um movimento articulado de denúncia e solidariedade.

Da mesma forma, a exigência de consulta prévia, livre e bem informada aos povos originais e comunidades tradicionais como pré-condição para a introdução de grandes projetos – conforme determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho –, tradicionalmente reivindicada pelas populações amazônicas dos países vizinhos, é agora também desfraldada pela resistência contra a construção das hidrelétricas de Belo Monte e as do Rio Tapajós, no Brasil.

Um caminho no meio da floresta

Para as populações da Amazônia brasileira e da Pan-Amazônia, a articulação e a unificação de suas lutas são um imperativo de sobrevivência. Os projetos de integração viária e de infraestrutura continental, conhecidos genericamente como Iniciativa de Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA), capitaneados pelo Brasil com financiamento do BNDES, afetam inúmeros povos por meio de deslocamentos forçados, destruição ambiental, desestruturação das culturas e criação de novos bolsões de miséria.

Somada ao observado anteriormente, a reprimarização das economias regionais, que cada vez mais se alavancam na produção de commodities pelo agronegócio e pela exploração mineral, traça um quadro nada animador para os povos das florestas e das urbes amazônicas.

Objetivando dar conta de enfrentar essa situação, urge a conformação de um programa de ação que seja capaz de interligar povos distintos, de idiomas e culturas diversos, separados por grandes distâncias e com grandes problemas de comunicação entre si.

Tomando em consideração a experiência prática, o pilar central desse programa parece ser a exigência da obrigatoriedade da aprovação, por parte das comunidades originais e tradicionais, de qualquer projeto que venha afetar seu modo de vida. Tal reivindicação, para além de ser um instrumento defensivo e de resistência, tem enorme alcance, forçando os limites da democracia meramente representativa e obrigando a rediscussão dos interesses do Estado – muitas vezes chamados erroneamente de “interesse nacional” –, de um lado, e as aspirações objetivas de populações inteiras, de outro.

Começar a dar poder de decisão aos povos da Amazônia nos temas que dizem respeito ao seu destino é a única maneira de romper com o velho pacto colonial ao qual essa região está submetida há séculos.

Luiz Arnaldo Campos, Coordenador técnico da Fundação Lauro Campos e componente do Fórum Social Pan-Amazônico (FSPA).

Dion Monteiro, Pesquisador do Instituto Amazônia Solidária e Sustentável (Iamas) e componente do FSPA.

Publicado no Le Monde Diplomatique