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Pandemia da covid-19 e território usado no contexto da crise da globalização neoliberal

Edmilson Brito Rodrigues*

Artigo publicado no livro “Reflexões Geográficas em Tempos de Pandemia”, organizado por Aiala Colares Oliveira Couto e Luiz Augusto Soares Mendes, Editora Itacaiúnas, 2020. A íntegra pode ser acessada clicando aqui.

Conceituando espaço porque pandemia é evento relacionado ao uso do território

Milton Santos, de quem serão usados conceitos e noções livremente, pensou o objeto de estudo da Geografia, o espaço geográfico, em uma perspectiva dinâmica e dialética. Espaço geográfico, para o autor, é um híbrido de sistemas de objetos e sistemas de ações. Significa dizer que todos os objetos e todas as ações estão indissociavelmente ligados de forma sistêmica em um processo permanente de reconfiguração. Fala-se aqui de reconfiguração geográfica apreensível em cada período histórico. O processo de reconfiguração geográfica há muito deixou de ser resultado de processos caracterizados pelo que se denominara de transformações da natureza primeira. No período histórico atual, o período técnico-científico e informacional, como caracteriza Milton Santos, ou período da Globalização neoliberal, a racionalidade capitalista e seu motor, a mais-valia, são hegemônicos e condicionam a historicização do espaço – o território sendo usado – submetendo-o à lógica da acumulação privada da massa de lucro, criando contradições, e mesmo os antagonismos, entre as diferentes formas de uso.

Os usos do território se dão em duas grandes perspectivas. Os usos hegemônicos, que reduzem o território a fontes de lucro, a bem mercantil e, portanto, base fundamental para o processo de acumulação ampliada do capital, são o processo histórico de concentração das riquezas socialmente produzidas. O outro campo de uso, que é o popular, ou seja, o uso do território e, obviamente, dos seus recursos, caracteriza-se como um tipo de racionalidade voltada ao bem comum, tendo em vista que a perspectiva popular estabelece a condição de bens sociais a esses, sejam financeiros, hídricos, florestais, agrícolas, industriais, que são condição de vida e frutos do trabalho humano, de modo que os objetos resultantes do trabalho, mesmo o meio natural preservado, são intencionalidades.

Há um conceito desenvolvido por Milton Santos que é fundamental para a interpretação do espaço e dos territórios e seus usos no contexto do período histórico atual. Refiro-me ao conceito de espaço banal, que seria o espaço de todas as empresas, instituições, pessoas, de todas as vivências, contradições e tensões; todo o espaço, e ao mesmo tempo espaço de todos. O conceito de espaço banal permite-nos diferenciar quantitativa e qualitativamente o que caracteriza os territórios e seus usos. Essa concepção de espaço sintetizada nesse conceito nos remete à ideia de que o espaço geográfico é o espaço em disputa, pelos diferentes usos, como acima dissemos.

Pode-se dizer que vivemos um momento em que a técnica e a política se planetarizam, porque pela primeira vez na história estamos autorizados a falar em um tempo empírico universal que se faz com autorizações planetárias. Isso nos remete a pensar, se considerarmos as diferentes racionalidades dos usos dos territórios, e no caso específico, do território brasileiro, em intencionalidades, em eventos ou ações cujos conteúdos são fortemente marcados pela seletividade, e que por isso pode-se dizer que a história do presente se expressa diferenciadamente nos lugares e que os eventos se constituem em fatos. Ou seja, as facticidades também são diferentes nos distintos pontos do planeta, têm diferentes tempos empíricos, universal, planetário.

Essa perspectiva de espaço banal como todo espaço e espaço de todos, é a ideia de que o uso do território se concretiza nos lugares, mediante diferentes temporalidades, onde todas as ações realizam-se como um acontecer solidário. O espaço banal é o conjunto de cristalizações das existências, é a materialização de eventos, as normatividades públicas ou corporativas. Estas visam fundamentalmente transformar todas as vidas e tudo em mera fonte de lucro, em mercadoria, daí a possibilidade de precificação.

A concentração de lucro nas mãos de uma minoria cada vez mais próspera gera, em contrapartida, uma maioria cada vez mais inquieta. Essa inquietude pode ser expressão de um projeto contra hegemônico, ou seja, um projeto de futuro estruturalmente diferente, a ser conectado ao presente, síntese fugaz de temporalidades passadas desigualmente acumuladas e, ao mesmo tempo, grávido de futuro

Desigualdades e crise estão sempre associadas

As diferenças do território são aspectos fundamentais da paisagem e da sua substância, porque paisagem é a expressão perceptível do território usado, mas ela é substanciada por relações sociais. No entanto, as desigualdades do território são expressões das perversidades estruturais que tendem a ser aprofundadas por conta dos usos hegemônicos baseados na docilificação do território autorizado pelas normas permissivas aos usos hegemônicos.

Apreende-se, por exemplo, a questão do saneamento, ao verificar, com base no Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), que no Brasil35 milhões de habitantes não têm acesso aos sistemas de água potável. São 100 milhões de cidadãos sem acesso à rede de esgoto. No Pará, 53% dos habitantes não têm acesso ao sistema público de água e esgoto. É claro que há consumo de água onde não há sistemas técnicos de fornecimento de água, mas não sem riscos à saúde e à vida. Há, ainda, 88% dos paraenses sem acesso a um sistema técnico de engenharia para o esgotamento sanitário, sendo menor ainda o percentual de tratamento dos efluentes das poucas redes existentes.

Quanto à relação existente entre número de médicos e número de cidadãos, James Humberto Zomighani Júnior apresenta uma cartografia da distribuição dos médicos no território em pesquisa feita sobre a Covid-19 no Brasil. Com base em informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Conselho Federal de Medicina (CFM), ele desnuda as desigualdades inter-regionais, tanto no que diz respeito ao número de médicos com relação à população, como no que diz respeito às desigualdades intraurbanas.

As diferentes implicações do novo Coronavírus no território brasileiro quanto à constituição e seletividade de seus usos pelas pessoas manifestam-se claramente através dos dados seguintes: o Acre conta com apenas 917 médicos, enquanto São Paulo conta com 142.425 médicos. A distribuição relativa de médicos em Brasília alcança 5,54 médicos por mil habitantes, enquanto no Rio de Janeiro há 4,4 médicos por mil habitantes, e em São Paulo, o estado mais rico da federação, apenas 3,31 médicos por cada mil habitantes. Contudo, quando se fala do Pará, tem-se menos de um: 0,98 médico por mil habitante. O caso realmente mais grave, é do Maranhão, com 0,93 médico por mil habitantes.

Além dessas desigualdades relacionadas aos estados entre si, a pesquisa aponta desigualdades dentro do estado e entre centro e periferia das capitais, ou ainda entre as instituições públicas e privadas. Então, saneamento e número de médicos por população são apenas dois elementos metodologicamente apresentados em síntese para que se possa entender a geografia da negação do direito pleno à cidadania no contexto dos diferentes usos do território.

O território como norma é porta para pandemias

Em vários períodos históricos a humanidade vivenciou pandemias, situações históricas em que significativos contingentes de pessoas humanas foram levados a óbito. Em geral porque as técnicas ainda muito atrasadas não permitiam o desenvolvimento de medicamentos ou vacinas compatíveis com a necessidade do combate concreto a determinados agentes produtores de certas endemias. O atual período gerou uma técnico-“cientifização” dos territórios em níveis jamais vistos, o que obrigou a pensar o espaço considerando o papel ativo dos fenômenos técnicos que lhe são inerentes e que são movidos pela tensão entre os contraditórios e antagônicos interesses e usos que têm na informação a medida de suas potencialidades viabilizadoras.

Uma outra ideia-força fundamental para entendermos a crise provocada pela pandemia, que é ao mesmo tempo uma crise sanitária, mas é social, econômica, política e cultural, é a ideia de “território normado” concebido por Milton Santos.

Após 21 anos de ditadura militar, uma ditadura sanguinária, o povo brasileiro conseguiu implementar uma constituinte e viabilizar a Constituição de 1988. Esse processo representou a legitimação de um novo estado de direito, uma nova ordem constitucional e institucional. Se o território pode ter sito, a partir de 1988 um “território normado”, ou normatizado, os agentes hegemônicos atuaram desde o início dessa nova institucionalidade a desconstruir e reverter o que pudesse representar a defesa da soberania e dos direitos sociais.

Pode-se citar um artigo da lei maior para apreender sua intencionalidade pró cidadania: Artigo 3º, incisos III: “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”; e inciso IV: “promover o bem de todos sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Acontece que a globalização neoliberal contém autoritarismo intrínseco. A globalização neoliberal e sua ideologia de que tudo pode ser mercantilizado com o objetivo de lucro máximo só pode manter sua existência pela negação da democracia, o que autoriza denominar a ação sistêmica de globalitarismo, para afirmar a indissociabilidade entre globalização e autoritarismo.

O sistema, para produzir suas perversidades, destruir o equilíbrio ecológico, os direitos sociais, genocídio de pobres, negros ou indígenas precisa do uso da violência, o que sempre foi uma característica do estado capitalista, mas que no presente torna-se tão extremada quanto necessária para viabilizar o máximo de concentração de riqueza em desprezo a qualquer compromisso com a dignidade humana. Na globalização neoliberal não há lugar para a democracia, as instituições usam essa democracia sem substância social para legitimar o desmanche das instituições e do estado de direito. O território normado vai dando lugar a um território como norma, uma espécie de docilização para os usos pelos agentes hegemônicos e suas consequentes perversidades.

A concentração de renda é uma das características dessa estrutura perversa em que cinco brasileiros detêm uma riqueza superior à renda de toda a metade da população brasileira mais pobre, ou seja, 106 milhões de brasileiros não conseguem ter renda que lhes dê o mínimo de dignidade, e não conseguem somar a renda concentrada nas mãos de apenas cinco grandes empresários, segundo a Oxfan.

Esta realidade tão desigual e preserva não é o suficiente para essa lógica insaciável. Essa é a razão para o esquartejamento da Constituição, da Emenda Constitucional de número 95, a qual estabeleceu um teto de gastos para as despesas primárias, como saúde, educação, infraestrutura, ciência e tecnologia, assistência social e previdência ao tempo em que deixou sem quaisquer limites os gastos financeiros e intocável o sistema da dívida, que inviabiliza qualquer sentido de desenvolvimento soberano. Território como norma e o desmanche institucional generalizado, destacadamente os cortes dos recursos e fragilização do sistema público de saúde se não explicam a origem da pandemia, explicam, contudo, a catástrofe por ela provocada contra os pobres.

Propostas para reverter desigualdades e proteger os povos de novos riscos

Em trabalho intitulado “A desigualdade na pandemia” Thomas Piketty expressa a convicção de que o atual regime característico da Globalização neoliberal e da livre circulação de capitais incentiva a evasão fiscal, favorecendo milionários e multinacionais, o que acaba por inviabilizar o desenvolvimento de países pobres. Baseado nessa interpretação, Piketty propõe que a correta reação à crise atual seria a revitalização dos estados de bem-estar sociais dos chamados países desenvolvidos (Norte), que vêm sofrendo com a agenda neoliberal e destruindo direitos sociais, além de uma aceleração do desenvolvimento nos países subdesenvolvidos, dependentes (Sul), onde as desigualdades socioespaciais são mais profundas.

Isso pressupõe, entre outras medidas, políticas sociais na área da saúde, educação, o fortalecimento, portanto, investimentos significativos no fortalecimento do Sistema Único de Saúde no Brasil e o necessário enfrentamento de um gargalo sistêmico: a dívida pública. Piketty chega a propor o perdão pelo Banco Mundial das dívidas públicas dos países subdesenvolvidos, contudo, essas propostas pouco têm audição na situação política do Brasil, em particular no atual momento, sob comando de forças claramente fascistas e liberais radicais. Para ele, é óbvio que a pandemia da Covid-19 ajudou a aflorar os problemas estruturais e aprofundou as desigualdades, mas ela, por si só, não explica as desigualdades. Daí porque propor saídas estruturais.

Por uma geografia da medicina

Neste momento cabe recuperar importantes reflexões críticas sobre as circunstâncias, particularmente das condições brasileiras em tempos de pandemia de Covid-19. Há um estudo importante de Antônio Heleno Caldas Laranjeira no seu “Mapa do Coronavírus – Desafios e Direções”. Após refletir sobre a compreensão da existência humana na perspectiva histórica, conclui que nos últimos anos doenças zoonóticas têm nos levado a crer que a informação é a principal arma da qual se deve municiar para enfrentar a guerra contra o novo coronavírus.

Seu estudo mostra que o Ebola, a Zika e a própria Covid-19, que teve início na China, possuem profunda relação com o desmatamento, a comercialização de animais silvestres, tidos como fatores que, se não são por si só explicativos, são fatores que contribuem, fatores somáticos à explicação dessas pandemias. Ele recupera a ideia de Milton Santos, de 1977, para defender a necessidade da interdisciplinaridade para o conhecimento geopolítico, ou seja, para o conhecimento da geografia da saúde, da medicina global e da inovação no período atual. Em “Une géographie de la médecine”, Santos mostra que a totalidade do movimento social e as razões específicas, particulares, são aparentemente locais; o que é manifestação local, a rigor é manifestação de um movimento contido na totalidade do movimento social.

Significa dizer que a pandemia provocada pelo novo Coronavírus é resultante de um padrão de desenvolvimento, cujo padrão caracteriza, de forma essencial, o modo de produção capitalista no período da globalização, e que insere formações sociais diferentes, inclusive a formação social chinesa, que, mesmo que autoproclamada comunista, age na lógica do capitalismo, um capitalismo de estado e, portanto, é submetida à racionalidade do capital e do lucro.

Laranjeira recupera o pensamento do geógrafo francês, Maximilien Sorre, para quem todo complexo patogênico origina-se em organismos, mas em um determinado território; toda transmissão inicia-se em contexto espacial, híbrido de sistemas de objetos e sistemas de ações, incluindo animais e micro-organismos em uma escala geográfica local. Daí propor o uso de técnicas de georeferenciamento, geolocalização e geoprocessamento para facilitar a compreensão da relação lugar-mundo – mundo entendido como espalho global e lugar entendido como espaço do acontecer solidário, na perspectiva miltoniana. O lugar é localização de um complexo patogênico e isso exige análise multi-escalar, multidisciplinar e a compreensão do fato como um fenômeno global.

A pandemia provocada pelo novo coronavírus tem estimulado um intenso debate sobre perspectivas estratégicas e sobre a necessidade de mudanças estruturais baseadas na crítica da ideia de que o progresso capitalista, metaforizado como modernização, deve ser viabilizado a qualquer custo, mesmo que signifique aprofundar as desigualdades sociais e os desequilíbrios ecológicos, em um processo de reconfiguração geográfica perversa. Isso porque ela é produtora de desigualdades espaciais expressas nos usos do território garantidores de prosperidade a uma minoria de agentes (classes, corporações empresariais, territórios cêntricos etc.) e negação de direitos e, por isso, também de inquietudes e resistências das multidões, desde os mais diversos lugares geográficos, os espaços dos aconteceres solidários, como concebe Santos.

A crítica ao sistema não autoriza positivação da Covid-19

Há reflexões críticas que, contudo, cometem equívocos. Luiz Gonzáles Reys é um desses pensadores críticos que acerta na crítica do antropocentrismo, do capitalismo e da tecnolatria e na defesa de um projeto alternativo de civilização, mas erra na interpretação dessa crise sanitária e econômica. Em “Las lecciones que puede dar el coronavirus a la especie humana”, ele contradita a ideia de “complexo patogênico” desenvolvido por Max Sorre, apresentada aqui por Laranjeira. Ao observar que o coronavírus é um dos micro-organismos que compõem Gaia, reflete sobre as mutações do meio biológico e conclui que a pandemia é consequência dessas mutações, que acabam por gerar novos micro-organismos. A tecnolatria inerente à racionalidade capitalista é, na visão desse autor, responsável por essa crise sanitária, econômica e social, à medida que esse sistema nega o equilíbrio e os direitos da própria natureza, de Gaia.

Porém, Gonzales comete um equívoco ao afirmar que “o coronavírus é uma excelente notícia. Está significando uma parada na atividade econômica, que implica um freio à destruição ambiental, a primeira de todas a distorção climática.”. A considerável crítica ao antropocentrismo e ao padrão de acumulação hegemônico, irrefutavelmente destrutivo do equilíbrio socioespacial, resvala em uma interpretação incorreta de que as consequências da pandemia nas atividades econômicas são positivas. Ora, se em grande medida a massa de lucro é reduzida com prejuízos às empresas, o crescimento do desemprego é inversamente proporcional e o circuito inferior da economia, com destaque à esfera de trabalho informal, são os mais perversamente atingidos. Mesmo porque, no estágio atual do modo de produção capitalista, em que o processo de monopolização da economia global redunda no controle das finanças por grandes corporações oligopolistas, são essas corporações as que tanto mantêm seu padrão destrutivo de acumulação, quanto mais podem resistir ao potencial destrutivo da crise sistêmica aprofundada pela pandemia.

A ideia de que devamos nos reintegrar de forma harmônica aos ecossistemas, como mudança necessária e possível, não tem possibilidade de constituir-se em existência no curto prazo, muito menos porque o perverso período da quarentena é curto quando se trata de pretender mudanças de concepções filosóficas, valores culturais, de visões civilizacionais e de concepções de desenvolvimento alternativos aos atuais.
Acontece que no caso brasileiro e, certamente, em outros territórios, as perversidades do uso hegemônico do território têm se aprofundado.

Bastaria citar o que prova o relatório do INPE – Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais: somente em maio de 2020, o bioma amazônico perdeu 829 km² de sua floresta. Isso sem agregarmos ao desmatamento a contaminação e mortes de indígenas, mormente dos povos isolados, que pelo pouco contato com a civilização urbana são mais suscetíveis ao contágio e à morte. Assiste razão à Cristina Serra ao afirmar que “Hoje os mapas de incidência da contaminação mostram que a peste se alimenta do sangue das periferias” e segue em sua crítica à intenção genocida a fim de gerar uma espécie de “raça” superior, a partir dos que conseguirem sobreviver: “Estamos diante de um mal disfarçado projeto de eugenia. E o povo, apinhado em ônibus, trens e metrôs, vaia sendo tocado como gado, rumo ao abatedouro.”. O que, contudo, como expressão da necessidade de existência, os pobres e periféricos criam solidariedades que, ao mesmo tempo, são formas de resistência e de fomento de sua revanche.

O otimismo é positivo, porque nos evoca a perceber que o futuro pode ser virtuoso, mas não nos autoriza a julgar possíveis saltos históricos qualitativos apenas nos referenciando nas dificuldades e, também, solidariedades fomentadas pela pandemia. Não há razão para a afirmação de que o coronavírus é uma boa, muito menos, excelente notícia. Mas dela tiraremos aprendizados fundamentais para evocarmos o período histórico verdadeiramente humano da humanidade.

O futuro é possibilidade e não autoriza pessimismos

Também, não há razão para uma postura pessimista em relação ao futuro, como, aliás, alguns pensadores críticos, comprometidos com os direitos sociais e os direitos da natureza, sugerem. Leonardo Boff chega a sugerir que, depois da Covid-19, ou a humanidade aprende a cooperar, ou não terá futuro nenhum. Para o filósofo: “Ou obedecemos à nossa natureza essencial, a cooperação, no nível pessoal, local, regional, nacional e mundial, mudando a forma de habitar a Casa Comum ou comecemos a nos preparar para o pior, num caminho sem retorno”. Não há razão afirmar a possibilidade de um caminho sem retorno. A rigor, as condições técnicas e filosóficas que se nos apresentam no período atual, como Milton Santos, favorecem as transformações estruturais humanizantes
Noam Chomski é outro pensador crítico que, contraditoriamente, recai em pessimismo ao afirmar que se não conseguirmos um Green New Deal (traduzindo-se livremente seria um Novo Acordo Verde) ocorrerá uma desgraça, como se o futuro da humanidade estivesse inexoravelmente ligado à lógica do sistema atual. O autor afirma, no entanto, que as funções públicas não podem ser controladas por instituições privadas. Essa é uma das fortes razões para vivermos a pandemia atual. Portanto, ele defende o fortalecimento do papel do estado no desenvolvimento de políticas estratégicas, mormente as sociais.

O caos sanitário e a negação do direito à saúde e à vidatêm relação direta com o desmonte dos sistemas públicos de saúde e sua privatização. Ao expressar sua crença nas transformações sociais, Chomsky argumenta a importância do Movimento Internacional Progressista, cuja perspectiva histórica visa conter o processo de acumulação de riqueza e o fortalecimento do poder popular. Ele é otimista quando afirma que há uma regeneração do movimento operário e popular que não é marginal.
A preocupação com a manutenção do padrão de acumulação capitalista mundial é justa. Ora, sem a redução drástica das emissões de gases do efeito estufa, sem uma política estruturante de eficiência energética, é claro que haverá consequências drásticas para a qualidade de vida da humanidade. O capitalismo – exacerbado pelo neoliberalismo – autoriza a prever que novas epidemias virão. Para Chomsky, a relação humana com o mundo animal, seja para o consumo alimentar ou em pesquisas, possui relação com a pandemia. Os governos que financiam com o dinheiro público essas pesquisas, ao resolverem investir em empresas privadas, compactuam com o que pode significar a origem dessa pandemia.

O território grita, porque há esperança

Pode-se concluir que as diferenças do território são conteúdo de sua beleza. Todavia, as desigualdades expressas no desemprego, na falta de acesso aos computadores e à rede mundial de internet, a fome, a falta de infraestrutura de saneamento, moradia, o desmonte do sistema público de saúde e outros sistemas públicos essenciais, tem levado o estado brasileiro à “UTI”, entre outras marcas tristes dessa reconfiguração geográfica entristecedora do território e que o faz, como afirma Maria Adélia de Souza, gritar.

Tudo isso pode e deve ser mudado, porque a despeito de não haver garantia de que tenhamos proliferado na produção de valores alternativos ao capitalismo, não há dúvida de que a pandemia desnudou contradições importantes. Ela mostrou que o estado é de fundamental importância para viabilizar a justiça social, o controle do equilíbrio ecológico, a dignidade humana. Ao mesmo tempo, a pandemia mostrou que o investimento em estruturas e políticas que vinham sendo constituídas em termos de psicosfera e tecnosfera como meras despesas injustificáveis passaram a ser vistas como políticas essenciais à vida e à dignidade do povo. O maior exemplo é o SUS, que se mostrou essencial para reduzir o impacto da crise, salvando vida de pessoas de todas as classes, porque ficou claro que a rede privada e os planos privados de saúde estão totalmente despreparados e descompromissados com o salvamento do máximo de vidas humanas vítimas dessa pandemia.

Referências

BOFF, Leonardo. O Covid19: ou cooperamos ou não teremos futuro nenhum. Colhido de www.cartamaior.com.br, publicado em 19 de maio de 2020, acesso em 12 de junho de 2020.

CHOMSKY, Noam. Se não conseguirmos um “Green New Deal” ocorrerá uma desgraça; In: El País. Colhido de www.brasil.elpais.com, acesso em 15 de junho de 2020.

GONZÁLES REYS, Luiz. Las lecciones que puede dar el coronavirus a la especie humana. Colhido de www.15-15-15.org/webzine/2020/03/14, acesso em 17 de maio de 2020.

LARANJEIRA, Antônio Heleno Caldas. Mapas do coronavírus: desafios e direções. In Outras Palavras. Disponível em:www.outraspalavras.net/outrapolítica/mapas-do- coronavirus-desafios-e-direções, publicado em 31 de março de 2020. Acesso em 25 de maio de 2020.

PIKETTY, Thomas. A desigualdade na Pandemia. In Carta Maior. Colhido de www.cartamaior.com.br, acesso em 17 de maio de 2020.

SERRA, Cristina. A caminho do abatedouro. In: Jornal Folha de São Paulo, 16 de junho de 2010.

ZOMIGHANI Junior, James Humberto. Distribuição dos médicos – Pesquisa Covid19 no Brasil. Colhido de www.facebook.com/mariaadelia.souza, acesso em 04 de maio de 2020.

*É arquiteto, Professor Doutor em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo e Prefeito de Belém.